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Diante dos olhos - 1 (Um novo olhar)

DIANTE DOS OLHOS

 

Evandro Calafange de Andrade

 

Tudo está diante dos olhos, mas só enxergamos o que queremos enxergar. Quando é conveniente tomarmos ciência dos fatos, sejam eles como for, por qual motivo tiveram de existir, o que trazem à nossa vida. E ao percebermo-los de verdade, já não é mais possível apagar o que se tornou tangível em nossa essência. Apenas irmos além do que podemos visualizar.

 

1

Um novo olhar

 

       Santo Antônio Salto da Onça, Rio Grande do Norte, manhã de segunda-feira, 31 de maio de 2010. Rua 31 de maio, bairro San Reis, casa 10, residência da família Martins Oliveira.

            Alyson abre a porta do quarto e adentra ao recinto sem nenhuma cerimônia, caminha rapidamente até a cama de solteiro próxima a janela azul celeste. Chegando bem próxima do seu destino, joga o seu corpo sobre o móvel, caindo sentada sobre o colchão e com as duas mãos começa a balançar o corpo do garoto. Em seu rosto esplandece uma felicidade irradiante.

            - Acorda, preguiçoso. Sabes que horas são? Já está mor tarde, menino.

            Continua balançando o dorminhoco. Este cheio de preguiça e sonolento, vira-se lentamente e com os olhos entreabertos olha para a menina sapeca.

            - Custa me acordar com carinho, Aly. – Volta a fechar os olhos.

            - Cara, está na hora de irmos à escola. – Levanta-se e caminha até o guarda-roupas, abre-o e tira o fardamento do adormecido.

            - Eu quero apenas dormir. Fui deitar super tarde ontem.

            - Levante! – Tira a coberta de cima do menino.

            O moleque toma o maior susto e se encolhe sobre a cama.

            - Você não pode fazer isso, não. – Fica sentado com os dois pés sobre o colchão. – Eu já tenho doze anos. Então, acordo meio... deixa para lá!

            Alyson começa a rir e senta-se na poltrona marrom, enquanto o menino continua na mesma posição sobre os lençóis.

            - Será que você pode me dar um tempo para eu me levantar tranquilamente, ir ao banheiro, tomar um banho e me trocar?

            - Sim, claro! Eu vou te esperar à mesa, tá certo, Will, ou melhor, Willycson Martins. Hoje vamos tomar café da manhã juntos.

            Sai do local rindo, mas de vez em quando se voltando para trás, só para ver a reação do outro.

            Após a saída da menina, o garoto levanta-se, tira a cueca, joga-a no cesto de roupas sujas e vai ao banheiro.

            Depois de aproximadamente 30 a 45 minutos que Alyson saiu do quarto do garoto e de ir à mesa do café da manhã, ele aparece para tomar o dejejum. Quando adentra à sala, ver a mesa preparada com muitas variedades de comidas, como pães, salgados, suco, leite, bolos, geleia, torradas, iogurte, entre outros itens. Parece que a mãe dele resolveu fazer e colocar sobre a mesa tudo que o menino mais gostava.

            Em volta do móvel estavam a mãe, o pai, o irmão mais novo, o primo Fernando e ela, Alyson, com um sorriso encantador. Parecia que a luz do sol que adentrava pela janela estava especialmente brilhante à volta dela. Ou aquele menino estava olhando com um novo olhar aquela menina de pele parda, cabelos negros e cheia de meiguice diante dos olhos dele.

            O silêncio foi quebrado com a música de parabéns para você cantada por todos os presentes naquele ambiente tão aconchegante. Foi nesse momento que o garoto deixou a ficha cair e lembrou que era o dia do seu 13º aniversário. Will deixou o sorriso tomar conta de seu rosto, recebeu os abraços calorosos dos pais, os abraços meio sem jeito do irmãozinho Miguel, os abraços meio brutos do primo e os abraços amorosos da vizinha mais sapeca da vida dele.

            Ao término do café da manhã reforçado, Will, Alyson e Fernando foram juntos à escola. Cada um em sua bicicleta. Os meninos sempre querendo competir para ver quem chegava primeiro. A menina sempre se divertindo com a disputa dos dois amigos e primos inseparáveis.

            Chegaram-nos ao portão da Escola Wilson Linhares, bem na hora que o sinal dava o último toque de dois. E como chegaram com a hora bem adiantada, o porteiro aproveitou para dar aquela chamada nos três.

            - Releva aí, seu Jorge. Hoje é o aniversário do meu primão aqui. Ele hoje pode tudo.

            Abraça o primo e assanha os cabelos dele.

            - Mesmo assim, tem de ter mais responsabilidade. Idade nova, ficando mais experiente, maiores ficam as nossas responsabilidades. – Estende a mão direita ao garoto. – Meus parabéns, Will Martins.

            - Obrigado, Seu Jorge.

            Os meninos entram, vão para as suas salas. Alyson e Will estudam no 8º ano A, já Fernando faz o 9º ano.

            Na hora do intervalo, entre a terceira e quarta aula do dia, no pátio da escola, Alyson vê Will sentado em um dos bancos brancos espalhados pelo local, lanchando e conversando com os amigos, quando Iolanda Saboia se aproxima do grupo.

            - Will, seu primo Fernando falou que você está completando anos hoje?!

            - Sim. – Confirma.

            Ela se aproxima dele, curva o seu corpo em direção ao do menino e com a sua cabeça bem próxima da dele, dá-lhe um beijo na boca.

            - Meu presente para ti, com sabor de cereja. Espero que você tenha gostado.

            - Sim. Gostei muito. – Fica atordoado e feliz com o presente da patricinha mais desejada pela molecada da escola.

            Fernando vai chegando todo empolgado, abraça o primo e fala alto:

            - E aí, garanhão?!

            A deixa para a galera tirar a maior onda da situação.

            A mocinha Alyson dá meia volta e caminha até sua sala. Senta-se em sua cadeira e começa a fazer algumas anotações em seu diário. Nesse momento, Solange entra e caminha até a amiga.

            - Miga, você vai ficar aqui? Vamos lá para fora. A galera está toda lá com Will, comemorando o aniversário dele. O Philip trouxe o violão, aí a galera está fazendo a maior festa. Will vai tocar e cantar. – Senta-se em uma cadeira próxima a de Alyson. – Sei que você ama de paixão ouvir e ver Will cantar e tocar violão.

            - Não estou no clima de festa hoje. Eu já comemorei o aniversário dele antes de virmos à escola. Tomei o café da manhã com ele e a família. Deixe-o lá com os amigos.

            Fecha o diário e o coloca dentro da bolsa.

            - Será que essa tristeza toda tem a ver com o “presente” de Iolanda para Will. – Deixa escapar um sorrisinho malicioso.

            - Claro que não. Por que eu iria ficar triste com isso. – Levanta-se e vai até a mesa de professores, senta-se em cima. – Você acha que eu... não.

            - Por que não, amiga? Vocês estão sempre juntos, são vizinhos, se conhecem desde o berçário.  

            As duas caem em gargalhada.

            - Não exagera, miga! – Exclama Alyson.

            - Praticamente. Quando ele chegou para morar na rua que você mora e na casa colada com a sua, tinha o quê? Dois anos? – Procura saber.

            - Um ano recém-completado. E eu estava com um ano e quatro meses.

            - Tá vendo. Você lembra de cada detalhe, acho que ele nem se lembra.

            - Garotos, miga! Garotos, miga!

            Elas se abraçam e deixam a risada se espalhar pela sala.

 

            De volta para casa, Fernando segue caminho até a próxima quadra, enquanto Aly e Will entram na rua onde moram.

            - Aly, eu senti sua falta hoje durante o intervalo. Principalmente quando cantei aquela música que você ama, Sem radar, do LS Jack. – Para a bicicleta.

            - Ôxe! – Ela para e olha para trás. – Por que parou?

            Ele caminha empurrado a magrela até ela.

            - O que houve contigo durante o intervalo? Sempre estamos juntos, desde que nos conhecemos. Onde estou, você está. Onde você está, também estou. O que mudou?

            - Deixe de ser bobo. – Volta a pedalar.

            Ele monta novamente, acelera até ultrapassar dela e para a bicicleta atravessada na rua em frente do veículo da amiga.

            - Que droga é essa, Willycson?

            - Já sei que a coisa é séria. Você só me chama de “Willycson” quando está com raiva de mim. Poxa! O que eu fiz?

            - Nada! Coisa de meninas. Não posso te dizer. Lembra que hoje de manhã você pediu para eu sair do seu quarto, porque já estava com 12 anos, na realidade 13 anos, e como estava apenas de cueca, eu não poderia te ver acordar, porque... Então!

            - Tá! Ainda não estou entendendo. – Fica com cara de paisagem diante dela.

            - Esquece.

            Começa a pedalar e se aproxima da porta da sua casa. Abre-a e adentra empurrando a magrela rosa.

            Ele fica parado olhando-a entrar em casa. Só depois da porta fechar, volta a se mover em direção a sua casa.

 

            Ao anoitecer, Will pega a bicicleta e vai até a casa do primo. Quando chega, toca a campainha, Fernando vem até o portão, abre-o e o visitante entra. Já dentro da residência, eles vão até o quarto do anfitrião. Os primos ficam jogando videogame em silêncio, o qual é quebrado com a chegada de Marina.

            - Meninos, trouxe para vocês sanduíches e sucos.

            Põe a bandeja sobre a escrivaninha e sai do local.

            - Obrigado, tia. – Diz Will olhando para a tela da tevê.

            - Valeu, mãe! Will, vamos comer. Estou morrendo de fome.

            Eles pausam o jogo e começam a se alimentar. Enquanto isso, Will começa a falar sobre a atitude de Alyson.

            - Não sei o que deu nela, cara. Simplesmente ficou toda fria para meu lado. Parece que está chateada com alguma coisa. – Senta-se sobre a cama.

            - Relaxa, brother! Deve ser coisa de menina. 

            - Nesse tempo todo que a gente se conhece, ela nunca ficou tão distante assim de mim. É tão estranho. Você sabe que todo dia depois de chegarmos da escola, ela sempre aparece lá em casa. Ela vive mais lá em casa que na casa dela. No entanto, hoje, depois da escola, não a vi mais. Sempre ela passa lá em casa à tarde nem que seja para jogar conversa fora ou ficarmos em silêncio no mesmo ambiente. Senti falta da presença dela, do... sei lá. Só achei bem estranho. Até parece que ela se foi dali e que nunca mais irei vê-la novamente. É um exagero, mas é assim que estou me sentindo, em um vazio.

            - Será que a Aly ficou com ciúme do beijo que a Iolanda te deu?

            - Será? Não! Somos apenas amigos. – Coloca o copo na bandeja, volta a sentar-se sobre a cama.

            - Ela já está a maior gatinha. Eu investiria nela se eu fosse você.

            - Cê tá loko! Somos apenas amigos.

            Sem falar mais nada, sai do quarto e volta para casa.

No percurso de volta a sua residência, o garoto pedala sua bicicleta em silêncio, aprecia a vista. Era como se estivesse vendo-a pela primeira vez. Não tinha muito o que admirar. Apenas casas, ruas e paralelepípedos, um carro passava ali e aqui, uma pessoa aqui, ali e acolá. Tranquilidade de um bairro em uma cidade do interior.

Entra em sua rua. Pedala mais um pouco, chega em frente de sua casa, desce da magrela e caminha até a entrada. Mas antes de entrar, fica parado na soleira da porta observando a frente da casa da amiga.

            - Será que ela está com ciúmes de mim com Iolanda? – Se pergunta.

            Fica pensando parado próximo à porta. Até que os seus pensamentos são interrompidos com a presença de Aly.

            Ela abre a porta de sua casa e vai saindo, está bem arrumada, maquiada e com um novo penteado.

            - Oi! – Cumprimenta-a Will.

            - Oi! – Responde sem muito entusiasmo.

            - Você está linda como sempre.

            - Obrigada! – Abaixa a cabeça.

            - Estou vindo da casa de Fernando. Achei que a gente não ia se ver mais hoje. Desde que chegamos da escola, você se trancou em casa e não saiu mais.

            - Eu estava me arrumando. Você sabe como são as mulheres. – Dar um riso envergonhado.

            - Eu sei. – Rir também. – Minha mãe é do mesmo jeito.

            - Estou indo à igreja. Hoje terá um evento lá. Por isso estou arrumada assim. Haverá uma apresentação e eu faço parte do elenco da peça. Claro que não sou uma atriz, ainda. Mas me esforcei muito para decorar todas as falas e fazer uma grande apresentação.

            - Lembro que você tinha falado. É sobre uma menina que viveu um milagre após sofrer um grave acidente.

            - Sim! – Fica feliz em saber que ele lembra de detalhe da peça. – Faz tanto tempo que falei para ti sobre a peça. Fiquei surpresa agora.

            Volta o corpo para dentro de casa e chama pela mãe.

            - Não se surpreenda muito não. Pois eu não me lembrei antes. Como você vê, não estou a caráter para te prestigiar nesta noite tão importante para você.

            - Não se preocupe, afinal, hoje é o dia do teu aniversário. Você não tem de me acompanhar, tem mais é que curtir o restinho do seu dia.

            Os pais dela saem de dentro de casa, cumprimentam-o, entram no carro e vão em direção à igreja.

            Will entra às pressas em casa.

 

            Após o pastor falar, ler e fazer as orações da noite, a banda começa a tocar, o altar fica todo escuro e os atores começam a entrar ao palco.

            Durante a apresentação, Alyson olha em direção à porta da igreja e vê Will sentado no último banco. Ela sorrir feliz com a presença dele.

            A apresentação termina, os atores vão para coxia. A menina está irradiante com o sucesso da sua apresentação e com a presença do amigo, sai às pressas em direção à rua para falar com ele, mas se depara com Will e Iolanda em um bate-papo bem íntimo na praça em frente à igreja.

            Alyson dá meia volta e caminha até o carro, abre a porta e adentra. Will a ver, tenta se despedir de Iolanda para ir falar com Aly, mas a menina o impede, com abraços e carinhos em seu rosto. Enquanto isso, os pais de Alyson entram no Ford e o condutor do veículo dá a partida. O automóvel vai se afastando dos olhos de Will. Aly sentada no banco de trás, fica olhando com os olhos lacrimejando para ele, através do para-brisa traseiro do transporte.  

            Iolanda consegue atrair a atenção de Will para ela. Milésimo de segundo depois disso, um novo acontecimento. E de repente o garoto vira-se assustado com o barulho estrondoso de uma colisão. Sem pensar em mais nada, afasta-se das mãos da acompanhante e sai correndo desesperado, chamando pelo nome de Alyson.

            Quando chega na esquina adiante, ver o carro, no qual sua amiga estava com os pais, colidido com uma picape. Tenta se aproxima para vê-la, mas alguns homens o impedem de se aproximar.

            - Me larga. É a minha amiga. Aly! Aly! Aly!

            O pastor Magno vem chegando e quando ver o desespero de Will, abraça-lhe e lhe conforta.

            Iolanda também chega e começa a ligar para os amigos. Em pouco tempo, uma boa parte dos alunos da escola, onde Alyson estuda começam a chegar para acompanhar o resgate da amiga e seus pais.

            Os pais e o primo de Will também chegam ao local. A sua mãe lhe abraça e tenta levá-lo para casa.

            - Não vou. Quero ficar aqui para saber como ela está.

            A ambulância leva as vítimas para o hospital. Will vai na companhia de seus pais para lá. Logo quando chegam ao local, o garoto recebe uma triste notícia. Como a pancada foi toda no lado onde a menina estava e mais na parte traseira do veículo, ela não resistiu e foi a óbito.

            Will cai de joelhos no chão em prantos, levanta-se e tenta ir até a amiga.

            - Deixe-me ir! Preciso falar com Aly. Alyson, preciso falar contigo. Venha aqui, por favor!

            Seus país o impedem, segurando-lhe e tentando lhe confortar naquele momento de tamanha tristeza.

            - Mãe, deixe-me falar com a Aly. Quero finalizar o dia do meu aniversário ao lado dela. Alyson, fala comigo.

            Os pais tentam confortá-lo.

            - Não é justo! Meu Deus, olha por ela. Hoje ela representou uma menina que sobreviveu milagrosamente de um grave acidente. – Relata. – Faça o mesmo por ela. Meu Deus, seja piedoso. – Implora. – Meu Deus, traga Aly à vida novamente. Não seja um péssimo pai. Meu Deus! Meu Deus! – Roga ao Senhor.

            Chora compulsivamente de joelhos em prece.  

            O pai o levanta e consegue tirá-lo do hospital com a ajuda de Fernando.

            Iolanda fica de longe apenas observado toda a agonia de Will.

            - Oi! Iolanda, você estava lá no momento que houve a batida dos carros.

            - Matheus, não quero falar... eu estou indo para casa.

            - Espera aí! Disseram que você e Will estavam no maior agarramento na frente da igreja, e que a Alyson viu e saiu chorando.

            - Quem está dizendo essas asneiras todas? Eu estava conversando com o Will. E se a Alyson nos viu, não sei. Também não sei se ela saiu chorando por ter nos vistos. E se nos viu, por que ela choraria?

            - Tu não sabias que ela era apaixonada por Will. Falam até que eles se pegavam escondidos. Quem sabe se não rolava algo a mais, já que ela vivia socada na casa dele, principalmente no quarto dele.

            - Como você é maldoso, Matheus. – Diz Karol. – Você não tem sentimentos, não. Nossa amiga, nossa colega de escola acabou de falecer tragicamente e você com essas malícias e difamações.

            - Matheus, você é um serzinho desprezível.

            Iolanda fala e sai na companhia de Karol. Já Matheus vai até outro grupo de amigos da escola e continua falando as besteiras que estava falando para as meninas.

 

            Na residência da família Martins. Will ainda chora, deitado sobre a cama e lendo algumas cartas de Alyson que lhe deu em aniversários anteriores. Olha as fotografias de tantos momentos felizes que viveram juntos.

            Os momentos vividos por eles se tornam presentes em sua mente como uma sessão de cinema. Uma cena após a outra. E um momento em especial é recordado com maior afinco.

            As lembranças da última festa da padroeira da cidade. Os dois curtindo vários brinquedos do parque de diversão, principalmente o Bate-bate. Parecia que ouvia nitidamente o sorriso de Alyson a cada vez que ele batia com o seu carrinho no dela. Em sequência, sentiu novamente a mão gélida e trêmula da amiga, quando a Roda gigante parou e os dois ficaram por algum tempo em seu topo. Recordou que dava para ver uma boa parte da cidade, lá do alto. O vento frio e suave batia em seus rostos, e Alyson demonstrava sua fragilidade.

            - Eu detesto roda gigante. Não sei por que eu vim. Por sua causa.

            Bate a mão no ombro do amigo. Este rir e olha no fundo dos seus olhos.

            - Não se preocupe. Eu estou aqui contigo.

            - A pior coisa que poderia acontecer é ficarmos parados aqui no alto, com esta cadeira balançando, esse frio gelado.

            A roda gigante dava indício de que vai volta a se movimentar.

            - Não é o pior. O pior mesmo está por vir.

            Quando a roda gigante começa a se movimentar e eles vão descendo, Alyson pega na mão esquerda do amigo. E ele sente o seu medo através da mão fria e trêmula dela. O garoto se aproxima mais da menina e tenta acalmá-la, deixá-la relaxada para curtir o momento.

            Ele fica fazendo gracinhas e cantando O tempo não para, de Cazuza, para que ela se esqueça do medo e aproveite, ao máximo, o momento. E entre um sorriso e outro, trocas de olhares, versos e estrofes cantaroladas, eles curtem a vista e o frio tão desconfortante na barriga a cada descida...

            As lembranças do menino são interrompidas no exato momento em que sua mãe entra ao quarto e se aproxima da cama do filho, senta-se e em silêncio lhe consola, fazendo carinho em sua mão esquerda.

 

            Um novo dia amanhece, Will e família se arrumam para ir ao enterro de Alyson. Eles entram no carro, o garoto, que está sentado no banco traseiro, deita a cabeça na porta do veículo e olhando a paisagem passar diante dos seus olhos, deixa as lágrimas rolarem em seu rosto.

            Quando eles chegam ao velório, encontram a mãe da menina, ainda com curativos médicos e com a mão direita enfaixada, sentada em uma cadeira, desconsolada, chorando a morte da filha. Enquanto seu esposo ainda está lutando pela vida no hospital.

            Will se aproxima do caixão da amiga, faz um carinho no rosto dela e deixa as lágrimas rolarem tão silenciosas em seu rosto, que chegam a interromper o tenebroso ruído da tristeza funerária.

            Logo chega a hora do cortejo, cada vez que se aproximam do cemitério, mas ele se ver distante da amiga. No entanto, nada é mais terrível e massacrante para o pequeno coração machucado dele, do que ver aquele caixão entrando naquele buraco no chão e sendo coberto por pares de barro. E tão doloroso quanto é viver o depois, saber que viverá de algo em diante um novo tempo repleto de lacunas. Assim se faz o pós, apenas uma volta solitária para casa e o adeus dá espaço para um fim cheio de lembranças dolorosas, que só com um longo tempo se tornam em saudades e um leve conforto no peito. Contudo, jamais esquecido, apagado, apenas guardado em um cantinho, dentro de uma pequena arca destrancada.

           

            Dias depois, Will vai até a casa da amiga, entra, abraça a mãe de Alyson que sofre com a perda da filha e com a doença do esposo, que a cada dia fica pior. Ele pede para ir ao quarto de Aly. Com a permissão, caminha vagarosamente até lá, chega, fica parado diante da porta, algumas lágrimas rolam em seu rosto, a mãe da menina o observa de longe e não consegue segurar as suas lágrimas. O menino toma coragem, entra. Observa cada detalhe, senta-se na cama perfeitamente arrumada como ela a deixou, levanta-se e passa a mão sobre o lençol para deixar impecável como estava. Caminha até a bolsa escolar dela, abre-a e tira o diário de Alyson. No primeiro momento hesita em lê-lo, mas deixa a ética para lá e o abre.

            Quando ele começa a ler o diário da amiga, confirma todo o amor que ela sentia por ele. Uma confirmação que lhe deixa pior do que estava, pois Willycson também já vinha descobrindo um sentimento além de amizade por ela.

            - Aly! – Olha para uma foto dela no porta-retratos. – Fui à igreja não só para te assistir encenando, mas para te dizer que te amava, na verdade, te amo agora mais do que antes. Queria te pedir em namoro. Queria comemorar os últimos minutos do dia do meu aniversário contigo.

            Chora, caminha pelo quarto. Olha para a foto de Alyson, volta a falar em voz alta.

            - Mas Iolanda pareceu, começou a dar em cima de mim, falando do beijo que me deu durante o intervalo. Aquele maldito beijo que te fez se afastar de mim no teu último dia aqui na Terra. Não estou culpando a Iolanda. A culpa é toda minha. Fui fraco, insensível. Um tolo por não perceber a menina maravilhosa que estava sempre foi ao meu lado.

            Volta a pegar o diário que estava sobre a cama.

            - Agora são apenas palavras sobre folhas de papel. São apenas palavras ao ar. São apenas lembranças, saudades.

            Põe o diário dentro da bolsa, coloca-a no mesmo lugar, leva o porta-retratos para o seu lugar de origem, vai em direção à porta, para, volta-se para trás e olha novamente para o recinto onde Alyson viveu momentos tão seu, tão íntimos e individuais que ninguém será capaz de roubá-los dela, da sua essência.

            Sente o perfume de Alyson, vê se materializar em sua frente os dois em momentos de descontração. Tantos dias que vivenciaram momentos lindos e de felicidade naquele quarto.

            - Ei! Acorda! Parece que está pensando na morte da bezerra.

            Empurra o amigo sobre a cama.

            - Para! Eu estava pensando aqui comigo. O que vamos fazer no último dia de aula?

            Levanta-se e caminha de um lado para o outro do quarto como isso fosse lhe ajudar a chegar a uma solução.

            - Por que temos de fazer alguma coisa diferente? Se o próximo ano estaremos de volta à escola?

            A garota deita sobre a cama e abre o livro. Ele se aproxima dela e retira o livro da sua mão.

            - Você não percebe que este é o último ano da gente nos anos iniciais do ensino fundamental e que o próximo ano estaremos no sexto ano? – Levanta-se. – Acorda, Aly! O próximo ano estaremos em uma nova escola. Vamos estudar na Wilson Linhares.

            - Grande coisa. – Levanta-se, caminha até a escrivaninha e senta-se na cadeira. – A Wilson Linhares fica na rua atrás da Fernanda Fernandez.

            - Como você é insensível.

            Os dois caem sobre a cama e começam a rir.

             Volta ao seu monólogo. Ele enxuga as lágrimas do seu rosto.

            - Então, adeus, Aly sapeca!

            Sai e fecha a porta.