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Conto um bocado de contos

Conto um bocado de contos

 

Evandro Calafange de Andrade

 

1

 

Aquele dia que fiquei tão só

 

    Nesse exato momento, fogem-me as lembranças de ter tido alguns dias tão atemporais em minha insignificante existência. Digo esta palavra porque é assim que estou a me sentir desde o fim dos primórdios caminhos sem silhuetas.

    Espero que não me julgue, pois, a vida já faz esse papel tão crucial em minha estrada. Com uma competência invejável. Nem um dia sequer fui tão competente em minhas peripécias nas grandes organizações onde me fiz presente de segunda a sábado, quiçá domingo a fio.

    Só que caminhar sóbrio não é para coadjuvantes, apenas os fortes conseguem carregar essa caminhada nas costas. E protagonista como eu sou do meu solar, ponho a minha mochila para trás e vou serpenteando a algum lugar.

    Houve um tempo que em minha face era só alegria abobalhada. Rir do vento na cara. Rir das piadas sem piadas. Rir das topadas. Rir das gargalhadas estrambólicas. Rir do nada até ir ao nada de um dia cinzento. Rir, simplesmente, assim.

    Pena que tudo se esvaíram das minhas mãos. Um de repente repentinamente sem fim. O que era luz se fez escuridão. O que era toque de carinho, tornou-se penoso demasiadamente. E eu só queria uma rede para me balançar. Um livro para uma boa leitura degustar. Um rádio para uma canção extraordinária me encantar. Só queria... acho que reviver, se tornar um redivivo. Voltar a ser um ser-amor, não sofredor.

    No entanto, sei que cada pedra no meio do caminho faz parte do nosso processo de ensino e aprendizagem. Mas quando a carga se transborda, fingimos estar em pleno oásis. Afinal, quando se pensa com o olhar, ver com a mente, sonha com a boca, vive-se em fantasia a quase realidade social.

    Na continuidade deste escrito, faço uma pausa para dialogar contigo. Meu amigo, se com essas linhas tristosas fiz tua singela e frondosa alma se entregar a sombria solidão. Não foi a minha real intenção. Apenas quis desabafar para aliviar-me um pouco o medo do desconhecido. Tirar-me um pouco desse vazio e voltar a luz solar pelo menos uma única vez.

     Assim como a vida diz que os fatos não são intencionais. As minhas lamúrias também não são. Se debulho espigas de lágrimas através dessa prosa, motivos tenho eu. E se estás tão desenformado da minha desolação, te contarei cada oração vivenciada. Portanto, assim começo a narrar, não pela introdução, nem mesmo pela complicação, mas pelo clímax narrativo.  

    Só precisava de mais uns segundos apenas, mas o doutor não quis me ofertá-los. Disse-me logo, no exato momento em que adentrou a sala de espera, simplesmente que a minha esposa havia falecido. Assim, sem tomar sequer um gole d’água. Nem ele nem eu. Recebi a notícia com a língua no deserto do Saara. Tão perdida quanto pipa sem corda no céu. Contudo, aguentei firme e forte. Não vejo problema algum de confessar para vocês, caros amigos leitores, eu estava de pernas bambas. Tão bambas que resolvi logo me sentar. Olhei para o nada e deste tirei da minha consciência o que precisava naquela hora, sendo assim, de mais nada me restava naquele exato momento, a não ser deixar rolar sorrateiramente dona lágrima no canto do olho. Claro que lá não poderia chamá-la de maldita, não por causa do ambiente onde estava, mas porque ela aliviou a angústia do pobre sofrido coração, este nem queria mais latejar em meu peito. No percurso, a noite caia, assim como despencava as minhas defesas bem lá no fundo. Foi quando percebi, havia tanta gente em minha volta. E eu apenas me afogava em minhas entranhas encharcadas de dores. Era, portanto, um sofrimento tamanho o qual me deixou ínfimo diante daquele caos de vida.

    Após o tudo, lá ia eu tão franzino em minha caminhada noturna-chorosa depois de uma longínqua jornada trabalhista. Ponho-me de pé na soleira da porta, com as chaves na mão, precisava realizar a única ação que a me restava. Assim se fez. Porta aberta, eu adentrando, jogando-me sobre o sofá, molhando a garganta com aguardente, enfim, durmo o sono dos justos. 

 

2

 

Nada além de nós dois

 

            O primeiro quadrimestre do ano tinha acabado de findar. A minha vida continuava como nos tempos de outrora. Muito de nada, como sempre foi. Só que naquela manhã cinzenta, as linhas, que estava tracejando, não seriam mais as mesmas. E após os fatos se fizerem presentes no meu ocular, percebi aquelas antigas frases que ouvira de minha mãe: Ninguém se banha na mesma água de um rio mais de uma vez. Ninguém sonha o mesmo sonho todas as noites. Pois é! Ninguém vive todos os dias, horas e instantes a mesma coisa. Apesar de aparentar viver.

            Na real mesmo, só quando algo acontece de diferentão no nosso dia, que chegamos a perceber as mudanças, as nuances da vida. Elas estavam ali na minha frente. Agora eu poderia vivê-las. E o mais inusitado de tudo isso, foi o sentimento de medo que se rebelou dentro do meu peito. Fiquei trêmulo, nervoso, suando frio. Mas precisava encará-las, afinal sempre esperei por elas. A verdade é que não dar para viver apenas sonhando a vida toda. É preciso saber que um dia precisamos encarar o destino, escolher um caminho, seguir em frente e concretizar os sonhos sonhados, quase sempre sem fechar os olhos.

            Pronto! Estava eu seguindo em direção ao desconhecido que tanto quis conhecer. Só que de repente, não mais que de repente, sinto um esbarrão no meu ombro esquerdo. Paro. Olho de lado. Vejo uma criatura até então extremamente indiferente no meu convívio social. Fiquei a olhá-la por uns dez ou mais minutos. Até que tomei coragem para lhe perguntar:

            - Quem és tu? Nunca tinha te visto antes por estes corredores do andar superior desta escola?

            Não tirava os olhos dos azuis dela.

            -  Eu? – Deixa escapar um sorriso tímido no canto da boca encarnada. – Sou Hannah Mattos. Aluna da 3ª série B. Se antes não tínhamos nos encontrado, foi porque eu ainda não existia nestes corredores desta escola.

            Sem dizer mais uma sequer palavra capaz de explicar suas orações. Parte sem volta-se para trás nem uma única vez.

            Fico eu ali imóvel com a cabeça a mil. É o filme de Hannah Mattos sendo exibido dentro da minha cuca maluca.

            Menina de aproximadamente 17 anos, aluna da 3ª série do Ensino Médio, provavelmente esteja no seu primeiro dia na escola. Moça de cabelos longos e negros, olhos azuis e grandes, pele macia, aveludada e branca feito nuvem em dia límpido de verão.

            Os dias seguintes foram feitos de Hannah. Sim! Para onde eu ia, para onde eu olhava, ela sempre se materializava em minha frente. Pela primeira vez percebi que aquela escola era tão pequena. Ou se tornou pequena demais para nós dois. Até porque, a gente não parava de se esbarrar. Ou era o destino nos aproximando, querendo nos juntar. Ou, simplesmente, um acaso do acaso.

            Ela realmente sabia me deixar inseguro, nervoso, sem jeito, como um moleque do ensino infantil em seu primeiro dia de aula. Sabe?! Quando a gente se ver sem a proteção de nossas mães. Ficamos ali olhando aquele desconhecido e se debulhando em lágrimas de medo, de raiva, de desespero, de sei lá o quê.

            Respirei fundo em uma sexta-feira qualquer. Aproximei-me dela na hora do intervalo. Ela estava conversando com duas ou três amigas, não me recordo muito bem. Fui extremante educado, dei bom dia para todas e perguntei olhando fixamente nos azuis de Hannah se a gente poderia conversar um pouco.

            - Sim! Mas pode ser daqui a alguns minutinhos?

            - Claro!

            - É que estou precisando ir ao banheiro com urgência. Vamos meninas?

            E lá vai ela e suas amigas. Na minha mente só passava no mesmo questionário: Por que as meninas sempre vão juntas ao banheiro? Será que ela inventou essa ida ao banheiro para fugir de mim? Será que estou com bafo de coxinha de frango? Será...? Será...? Será...?

            Lá estava eu no mesmo lugar, enraizado a esperar por ela e com a cabeça afogada em perguntas sem sentido, sem respostas, sem fim, nexo e conexões com a realidade.

            Até que uma suave voz me despertou.

            - Rapha!

            - Sim!

            Viro-me bruscamente e como sou desajeitado, como só eu sou, bati com a mão esquerda no copo de suco da pessoa que me chamava. Vou dar uma pausa para rir um pouco... Ok! Lembre-me que ainda tenho a ajuda divina. Deus parece olhar sempre por mim. Pois o copo estava vazio. Menos mal! Uma tragédia a menos nessa minha vida de adolescente sem eixo.

            - Então, o que você queria falar comigo?

            - É...

            As palavras fugiram.

            - Eu queria... não! Quero te convidar para irmos ao cinema hoje à tarde. Há alguns filmes em cartaz que estou louco para assistir. E hoje é um dia excelente para assistir a um bom filme. Não sei o porquê, mas sempre acho que a sexta-feira é ideal para ir ao cinema. Pena que ainda não tenho ideia qual filme assistir. Pois há três a cinco filmes sensacionais...

            - Tá certo!

            - Como?

            - Vamos ao cinema.

            O sinal tocou, avisando que chegou o término do intervalo. De repente percebi que estava tagarelando além da conta. Ainda bem que ela me interrompeu. Ainda bem. Mas o melhor dessa cena foi ouvi-la dizer “sim”.

            Não consegui mais me concentrar nas aulas pós-intervalo. Ficava pensando o tempo todo no meu encontro com Hannah Mattos. Foi quando também percebi que nunca tinha tido um encontro. O que eu ia fazer? O que eu ia falar? Explodi.

            - Porra! – Simplesmente deixei a voz gritar.

            Levantei-me da cadeira, peguei a minha bolsa e fui saindo da sala, em desembestado. O professor de História gritou: Rapaz, ainda temos mais um tempo de aula. Mas não quis saber. Precisava sair daquele casulo e respirar vida.

            Cheguei ao portão. O porteiro me barrou. Tentei persuadi-lo. Inútil. Rolou um bate-boca desnecessário. O orientador pedagógico apareceu e me conduziu a sala dele. Eu não sabia como começar. Estava lá sentado em frente aquele homem gordo, careca e bigodudo. Nunca tinha reparado nessa figura estranha. Tive tremeliques de náuseas só em olhar para ele.

            Estava aí a desculpa certeira. Náuseas. Fiquei parado olhando e olhando aquela figura. A náusea crescendo feito bolo fermentado. E de repente o inevitável, uma cachoeira de guloseimas saia da minha cavidade bucal sobre o chão daquela sala.

            Ao término, só vi um papel estendido em minha direção e uma voz dizendo: pode ir, garoto!

            Levanto-me lentamente, enquanto ele pega o telefone e chama uma ASG para limpar aquela imundice toda que eu tinha acabado de fazer.

            Livre eu estava para ir para casa e conversar com o meu melhor amigo, meu irmão mais velho. Um universitário do curso de Direito e um exímio pegador. O cara simplesmente sabia tudo de mulherada, de encontros, de ficar com as gatinhas. Eu precisava de um intensivão naquele exato momento.

            Quando a noite chegou. Tomei conhecimento de que tudo isso fora para nada. Fiquei lá na frente do cinema esperando-a. Como ela não apareceu, fui me afogar no fast-food. Nenhuma mensagem, um telefonema, uma explicação. Meu primeiro toco foi de arrebentar meu coração. Passei o fim de semana mal. Trancado em meu quarto, jogando videogame, esparramado sobre a cama e me nutrindo de muita gordura. Queria sair dali explodindo de diabete.

            Com muita dificuldade acordei para ir à escola na segunda-feira. Triste, meio deprimido, entrei na sala, sentei na minha cadeira de sempre, coloquei a bolsa sobre o braço dela e deitei a minha cabeça. Estava quase adormecido quando ouvi alguém falar em Hannah Mattos. Neste exato momento recebi a explicação por ela não ter aparecido.

            Cara, minha mãe falou que a Hannah estava indo para a parada de ônibus na sexta-feira à noite, quando foi abordada por dois garotos. Pegaram a bolsa dela, o celular, mas quando eles iam saindo, um voltou-se para trás e deu um tiro nela. Pegou bem na cabeça dela. Hannah está em coma. E segundo a minha mãe, o estado dela é grave, parece que não vai escapar.

            A última palavra de Miguel para Fábio foi um tiro na minha alma. Deixei o recinto e fui correndo para o hospital onde a mãe de Miguel trabalhava. Cheguei esbaforido, pedi informações, fui em direção ao leito dela, mas fui impedido de entrar, de vê-la. Hannah Mattos acabara de partir. Viajou sem despedir-se de mim.

            Não quis chorar. Sai caminhando devagar até a parada de ônibus. Olhava para todos os lados. Queria encontrar aqueles guris malditos. Avistei bem próximo a mim um moleque de rua. Era um possível ladrãozinho de uma figa. Se ainda não tinha roubado, matado, mas futuramente, quem sabe a poucos segundos daquele episódio, do qual eu era o protagonista, iria matar, roupar, ceifar a vida de uma bela menina inocente e cheia de vida, esplendecente com o seu sorriso encantador.

Um turbilhão de pensamentos e flash de Hannah sendo baleada tornaram a minha mente nublada. Enfim, sem pensar, fui até ele e o enchi de porrada. Tantas, tantas que deixei o suspiro dele se esvaísse entre os meus punhos.

            Fui agarrado por populares e conduzido à delegacia. Interrogado e levado a um abrigo para menores infratores. Nem advogado, nem meus pais conseguiram evitar a minha estadia naquele lugar. Era eu agora um criminoso frio e calculista. Um ser perigoso para viver em sociedade. Disseram que eu era um projétil psicopata desgovernado. Triste, né? Pois é! Sempre fui intenso. Nunca pensava bem no que dizia e fazia. Deixava a emoção dominar as minhas razões. E tive que pagar o preço imposto a minha dívida-social por ser como eu ainda sou.

            Para acabar a última gosta da minha caneta-tinteiro, preciso fazer esses finais de rabisco: Ainda hoje, depois que tanto tempo se passou, em minha vida não existe nada além de nós dois.